domingo, 27 de dezembro de 2009

Vitorino Nemésio

Um fio de asas
(Vitorino Nemésio)

Quando penso no mar, o mar regressa
a linha do horizonte é um fio de asas
e o corpo das águas é luar;

De puro esforço, as velas são memória
e o porto e as casas
uma ruga de areia transitória.


Ilustração: catedral

sábado, 19 de dezembro de 2009

Perdido


Perdi-me,
em noite tão escura
e fria,
não sei exatamente em que momento.
Vaguei,
por serras e penhascos,
pântanos e areais,
ermos lugares,
vazias palavras,
sem eco, sem luz...

Por tuas mãos retornei
e não sei dizer,
ainda,
onde estou...


Ilustração: acaogospel

sábado, 12 de dezembro de 2009

A. M. Pires Cabral


Os velhos
(A. M. Pires Cabral)

Porque se demoram
os velhos de sal no rosto?

Sentam-se ao sol, escoram
o corpo ansiado nas bengalas
comem e riem sem gosto

Entram na igreja com gengiva nua
Mansamente pedem e adoram

Porque se demoram?
Que teima é a sua?

Porque se demoram?
Aos tropeções na casa são fastio
Os velhos de tão gasta serventia

O que pensam quando passa mais um dia?
Porque parece que choram
sempre seus olhos de frio?

Porque se demoram?


Ilustração: opinativas.files

sábado, 5 de dezembro de 2009

Desaprendemos


Tivemos, sim, momentos em que,
como na infância,
tudo parecia irremediavelmente
sorrir.

Desaprendemos como rever momentos assim,
como preservar tímidos sorrisos,
como viver deste sol.

Desaprendemos, juntos,
o sabor deste sol...

E, juntos, vimos se desintegrar
o que só se faz
juntos...


Ilustração: 2.bp

domingo, 29 de novembro de 2009

Chuva


Traz novamente a chuva
e banha com ela o brilho
destes meus olhos,
a frieza desta minha sombra e
o sol deste dia de maio.

Traz novamente a chuva,
forte,
e limpa este piso do pó.
Inunda a alma desta manhã,
de esperança,
de lágrimas, de fé...


Ilustração: imgsocioambiental.org

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Verdadeiro

Conheço-te mais a cada lágrima
que te embaça.
Falsa ou verdadeira.
Conheço-te mais a cada sorriso
que estampas.
Falso ou verdadeiro.
Conheço-te menos a cada novo dia.
Sempre verdadeiro.
Ilustração: getty.images.com

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A.M. Pires Cabral

Silêncio
(A.M. Pires Cabral)

Toda a minha vida me escutaste em silêncio.
Tinhas à disposição as vozes enormes
do vento, das águas, do trovão, do pintassilgo-
mas nunca dei por que as usasses comigo.
Envelheci enredado
nas teias dessa mudez.
Ganhei a industriosa astúcia dos velhos
à custa de perder a candura original,
li com cada vez mais desenganada luz
o teu silêncio.
Assim, a princípio achava-o cúmplice,
quente e generoso. Um silêncio
de quem concorda e apoia,
e não acha necessário proclamá-lo.
Com a continuação,
começou-me a aparecer o teu silêncio
já só condescendência. O silêncio
de alguem que se dispensa de mostrar
desacordo por simples cortesia.
Ilustração: alegriaaa.wordpress.com

sábado, 14 de novembro de 2009

Te segue



Segue teus passos quem, incauto,
teus versos não leu,
quem, ausente, não bebeu do teu olhar,
não sentiu o sabor
amargo,
desta taça em que pousaram.

Segue teus caminhos, desatento,
quem não mede teus gestos,
quem não sente tuas asas,
quem não sabe chorar.

Segue teus dias quem, em desalento,
se deixou amordaçar,
quem, ferido,
já não sabe voar!


Ilustração: farm4

sábado, 7 de novembro de 2009

Cativa

Desvenda este mistério,
torna tudo mais claro,
mesmo nesta noite
escura,
sem luar.
Abre teu sorriso,
cativa a todos nós
com tuas verdades felizes.
Não torna a nos fazer
temer,
a nos fazer sentir
teu misterioso
olhar...
Ilustração: thaiscine

domingo, 1 de novembro de 2009

Velho retrato

Ah... aquela imagem difusa,
quase apagada, quase esquecida,
teus olhos quase sombrios,
o sorriso ainda claro,
o mistério, eterno,
tão presente.

Ah... aquela falsa realidade,
aquela ausente presença,
hoje,
só um borrão...

Ilustração: 3.bp

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Tempo


Construí o tempo, lenta
e caprichosamente.
E você o derrotou em um átimo.
Fica o vazio que mastiga a
solidão
e um corpo estranho,
de um verdadeiro motivo estranho,
que afaga a minha
solidão...
Ficam tuas mãos marcadas
pelo pecado no qual
acreditas.

Ilustração: farm4.static

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Vontade de ser eu

Morre,
em mim, o sonhador contumaz,
o delírio, a febre
e tudo o que me levou a voar!

Morre,
além do dia morno, suarento,
o brilho deste sol
inclemente, fogo diário!

Morre,
lentamente, toda forma de amor
e o mais estranho de todos,
naufragado nesta onda de mar.

Só não morre esta teimosa agonia,
esta desumana insistência,
esta vontade de ser, sempre,
eu!


Ilustração: varoeslabaredas

domingo, 18 de outubro de 2009

À deriva

Solto as amarras,
navego livre, sem destino,
rota incerta,
aventura desconhecida.

Descobertos pela frente,
novos rumos,
doloridos e ensolarados.

Traçar novos mapas,
novas cartas registradas,
impressões, novas,
sensações, novas.

À deriva, sigo...


Ilustração: garatujando

sábado, 17 de outubro de 2009

Nada garante


Não cabe nesta parte do dia
toda a verdade que observei
vinda daquele sorriso.

Não se pode compreender
a imensa sombra que
o silêncio da morte invoca.

Nem o íngreme caminho
a ferir meus pés
garante a eternidade
daquela verdade inicial

Ilustração: foto-damar

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Sempre assim


Se tivesse algum dia,
destes em que a luz do sol escorre
e tinge toda a manhã
de cores tão essenciais,
me buscado num jardim,
talvez,
num clamor, geral,
com certeza me acharia.
E o sorriso, natural,
no meu rosto,
surgiria contra o sol,
iluminado e comovido.
Como se tivesse sido sempre assim.


Ilustração: giegu

domingo, 11 de outubro de 2009

Finjo


Finjo compreender o que me é dado,
mesmo que me doam, magoem
os meus sentidos.
É desta forma que mantenho,
artificialmente,
a sensação de vida e
amor pleno,
ilusão do tempo
sem rancor.
E deste fingimento,
angústia,
fica este gosto amargo,
este travo,
de felicidade imposta,
deste vazio,
tão densamente cheio de você...

Ilustração: ginasticandoamente

sábado, 10 de outubro de 2009

Tênue


Insiste, ainda, em arder neste coração
aquela chama baça,
quase um nada,
acesa pra você.
Trêmula e tão delicada
já é quase um ponto invisível,
quase um nada.
Teimo em protegê-la com as mãos,
para impedir que definitivamente se apague,
morra.

Ah, pobre sonhador.
Desafiar ventos tão fortes.
Lutar contra a escuridão definitiva.
Luta inglória
que já quase não se
enxerga...


Ilustração: blogfullmoon

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Ser, talvez.


Talvez eu devesse ser
aquele homem de fibra,
personalidade forte,
vencedor,
imbatível,
(a não ser pela morte).
Talvez não devesse ser,
por não ter esta ideia
de vitória.
Talvez eu quisesse ser
eu,
talvez outra pessoa...
Talvez ninguém assemelhado.
Talvez eu nem devesse
ser!

Ilustração: agualisa2

domingo, 4 de outubro de 2009

Vou


Embarco neste sonho
como quem tem longa viagem
a cumprir.
Vou sem bagagem,
sem horário pra chegar,
sem retorno programado.
Vou sem medo,
sem sombras, sem fantasmas.
Vou,
pra nunca mais voltar...

Ilustração: acordomar

domingo, 27 de setembro de 2009

Ali, lá!



O que há além deste oceano,
imenso, frio?
Além deste azul, profundo verde,
abraço, afago gigantesco.
Ali, lá onde mora o verdadeiro
dia,
toda clara alegria,
ali, lá onde já andei.

Meus pés tocaram o sonho
onde eu não soube dormir!
O que há além deste oceano,
além dos meus equívocos?


Ilustração: blogal

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Meu sol

Ainda que de teu sorriso,
só de teu sorriso,
dependesse meu sol,
eu estaria mergulhado nas sombras,
as mais profundas,
sem qualquer esperança
de calor...

Porque assim tem sido!


Ilustração: omelhordaweb

sábado, 19 de setembro de 2009

Sombras


No horizonte
se desloca a sombra do ontem,
ainda chamuscada pelo fogo
da incompreensão.
E juntos, ou quase,
nos esforçamos para que a vista
alcance o perfil desta
sombra
e consiga ver, sentir seu futuro.
Se houver!

Ilustração: ferrus

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Meu mutismo

Poupar todas as palavras.
Mostrar com gestos,
olhares, todas as intenções e
desejos.
Calar-me
absolutamente, completamente e
poder transmitir meus
sentimentos e quereres.
E ouvir-te, lúcida, ciente de mim
e do brilho da minha alma.
Nada poderia falar mais alto.
Nada poderia gritar mais que minhas palavras.
Apenas eu.
Mudo!

Ilustração: blasfemias.files

domingo, 13 de setembro de 2009

Datas


Treze de setembro.
O mais normal deles.
Tão cheio de igualdades, lugares-comuns,
tão rotina.
Que dia especial.
Nada de novo,
nem mesmo para mim,
comum mortal figura, tão elementar...

Arrastado dia, dos que levam
mais de vinte e quatro horas para nos
deixar.
Parecido com tantos treze
de setembro
vividos em outras datas.

Resta a vida,
mágica,
que por ele passou e sobrevive,
quase imortal!

Ilustração: farm3.static

sábado, 12 de setembro de 2009

Do teu desejo


Acordo no meio da noite
ou será no início de um sonho,
do prazer novamente adiado?
Conheço todos os caminhos que
você percorreu,
marcados, sinalizados
pelos teus pés que,
impiedosos,
pisaram todas minhas esperanças.
Sepulto-as, agora, em plena
madrugada,
em mais uma noite de sonhos
perdidos.


Ilustração: 1.bp

domingo, 6 de setembro de 2009

Regresso


Regressar.
Adentrar, avançar mata cerrada,
escuridão tão densa
e regressar aos dias de sol.
Enfrentar o sentido das coisas,
bom ou cruel,
os segredos da chuva,
os medos do mundo e regressar
à casa,
porto de antigas naus,
que aguarda a nova atracagem.
Ousadamente,
regressar!


Ilustração: garatujando

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Convite

Vem,
toma um café comigo.
Não é um convite qualquer.
É mais que um sabor.
É um sonho!
Um compartilhar de calor,
de tempero,
de olhar.
É um estar juntos,
a um gole de distância....


Ilustração: cyberrodrigo

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Dias


A soma dos meus dias,
os longos e os curtos,
não modificam os teus.
A mistura de nossos dias,
todos os que passamos juntos,
mexem sim com nossos sentidos.
Foram muitos, foram poucos,
bons e maus.
Foram vida, afinal.

Que seria da minha vida
sem eles?
Que seriam deles
sem você?!

Ilustração: ead.pt

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Manuel Bandeira


Arte de amar
(Manuel Bandeira)

Se queres sentir a felicidade de
amar, esquece a tua alma.
A alma é o que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar
satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo estender-se com
outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas
as almas não.


Ilustração: demetrioesculturas

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Doce invasão


Imaginei
todas as vilas e cidades,
próximas e distantes,
unidas,
esperando pela voz de alguém que,
escolhido pelo mistério,
revelasse o que de mais profundo
pode assaltar a alma do homem.
Vi, no sonho que se seguiu,
crianças iluminadas pelo olhar dos velhos
correndo em direção
ao mar,
trazendo de lá
todo o amor necessário para transformar
o mundo.
Há de chegar o dia
em que naus vindas do oriente, do sonho,
trarão, em doce invasão,
as crianças,
portadoras da voz tão esperada...

Ilustração: fatosquemudaramomundo

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

(Des)caminhos


Esta lágrima, teimosa,
que, persistente, insiste em rolar
por minha face,
não tem o poder de lavar minhas horas,
de lavrar minha pele,
nem de saber o destino da sorte.
Sulca terreno arenoso,
deixa só um trilho de ida,
sem achar o caminho de volta...

Ilustração: desvontade

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

É vida

Preciso apenas dos ventos e dos
tempos para saber onde estou.
Onde ando, dependo dos raios de
sol,
das rosas o perfume e
o cheiro de mar.
O amanhecer me fortalece e o luar
acalenta meu sono.
Viver é assim aventura,
improviso e, nem sempre,
pavor.


Ilustração: 1.bp

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Braile


Nem sempre consigo enxergar o óbvio.
Nem ver que este céu azul é enorme.
Olho e não vejo estas tais magnólias.
Nem vejo, sequer, o tempo passar.
E nem fico triste com isto.

Afinal,
só tenho olhos pra você!


Ilustração: blind-tatoo/counternotions.files

domingo, 16 de agosto de 2009

Momento

Para dar fim a esta rotina,
posso muito bem inventar
a felicidade.
Ela virá vestida de rosa,
impecavelmente trajada
e, espero, ficará entre nós
para sempre.

Posso muito bem, também,
inventar um doce sorriso,
que combinará sempre
com esta tal felicidade.

Só não sei inventar o momento
em que tudo pode acabar!


Ilustração: gothic_silence

sábado, 15 de agosto de 2009

Eterna noite


Por que insiste em ser noite
o dia que nem terminou?
E a lua, onde se esconde,
por que não apareceu?
Incômoda noite fria,
eterna não vai terminar.
Companheira distante, silente,
só ela se encosta em mim...


Ilustração: open4group

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Fria sombra


O que vai pela vida
quando você se senta num canto,
na sombra fria,
com este nó na garganta que sinto agora
e a certeza que nada é real?
Certamente seu coração também se partiu
e aquele pedaço de alma que
me falta,
você também perdeu!

Ilustração: ipt.olhares

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Denodo

Respostas às perguntas que ouvi ao longo da vida,
a ponta e o solado de meus sapatos têm buscado
em caminhadas longas, curtas também,
sem cansaço, sem a perplexa dúvida
que a inconstância provoca.
Caminho incessantemente, atento aos
menores sinais ou ruídos das possíveis
respostas, mesmo sussurradas, nas
pequenas pegadas e rastros, como cão
farejador treinado e cuidado para estas missões.
Não há centímetro quadrado que
não tenha sido vistoriado, não há
canto que eu não tenha varrido, com
inesgotável denodo e determinação
para tão parcos resultados práticos.
Mesmo sem ainda ter as respostas
e mesmo sem resultados palpáveis,
fica claramente esclarecido que em
tudo o que há por fazer neste mundo,
o melhor método de investigação
a se adotar é o da caminhada!


Ilustração: 4bpblogspot

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Azul


Vem,
enche meus olhos de cor.
Traz a esperança de mãos de criança,
um sorriso, um raio de luz.

Vem
lua cheia, prateada,
banhando-se nas ondas do mar.

Vem,
silêncio de vozes cansadas,
lágrimas de mães solitárias,
esperança de amanhecer...


Ilustração: fotoache01.stormap.sapo

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Sementes



Não tenho raízes neste lugar.
Muito mais que isso,
tenho sementes aqui plantadas,
a espera de tudo para brotar.
A espera da chuva,
a espera do sol,
a espera de tuas mãos...


Ilustração: olharindiscreto

sábado, 8 de agosto de 2009

Dorme minha cidade

Dorme minha cidade
mergulhada na escuridão do silêncio.
A última voz do dia,
nela,
há muito se calou.
Descansam os que correram
e os que nada fizeram.
Nenhum ruído ouvido.
O pio de uma coruja, sequer.
Ouve-se apenas a lágrima,
insistente,
que rola por minha face,
desde que você me deixou.

Dorme minha cidade.
Menos a minha dor!


Ilustração: picturepixel

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Rei Sol


Assume o sol o centro do céu,
local adequado para reis como ele.
O dia se torna então insuportavelmente
quente.
O calor escorre em gotas, ou melhor,
em cascatas
por sob a camisa,
fazendo com que sombras virem
sinônimo de desejo.
Uma leve aragem, Paraíso.
Rei inclemente este.
Derrete-nos a todos para governar.
Impiedosamente...

Ilustração: rondoniaovivo

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Teus cristais


Mal amanhece o dia
e neste início de clarear deparo com
teus olhos, teus grandes e vivos olhos,
que não cansam de me contar
sobre aquela ingênua época.
Separam eles, claramente,
tempos de verdade de dias perdidos.
Estes, como vapor de água fervente,
ganham rapidamente o espaço e
convertem-se em nada.
Já as verdades, como cristais, perduram.
Embora perdurem,
como alguns cristais,
têm brilho opaco...


Ilustração: fibraotica.com.br

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Plantar

Planta o homem, a empresa, em chão
preparado, alimento que esperam
vender e lucrar.
Planta o roceiro, em chão que lhe
coube, alimento que espera
viver pra colher.
Planta o poeta, em chão tão seco,
versos que espera
que alguém colha.


Ilustração: rosahcasanova

domingo, 2 de agosto de 2009

Passado


Queria ter certeza de não pensar passados,
de não voltar no tempo,
não revolver lembranças vãs.
Sei da inutilidade deste ato,
embora não consiga dele ter controle.
E fica a marca funda, a cicatriz na alma,
a certeza de ferir-me sempre que me pego
assim,
recordando, reescrevendo a mesma
inútil estória sem heróis...
E fica este olhar perdido, voltado para trás,
teimoso,
insistindo em nada ver!

Ilustração: charquinho.pt


sábado, 1 de agosto de 2009

Irene Lisboa


NOVA, NOVA, NOVA, NOVA
(Irene Lisboa 1892-1958)

Não era a minha alma que queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter...
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!

Ilustração: barbferreira

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Contar os números


Contar, com tanto prazer, números.
Como se em sequências exatas numerássemos triunfos
Até fracassos, talvez...
Todos conhecidos, memorizados.
Contar, entre tantos abraços, números.
Como se a soma, cada vez maior,
atestasse crescimento.
Lembrar tempos passados,
ainda ali,
tão perto.
Imaginar futuros possíveis.
Possíveis?...

Ilustração: geek42

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Ausência


Mais que tua ausência,
marca forte minha boca
aquele sabor de noite, de bruma,
o cruel açoite daqueles ventos,
que juntos arrebatamos.
Ainda ardem nos meus olhos
aquelas tardes frias
que insistimos em desafiar.
Pesam ainda em meus ombros
aqueles coloridos sonhos e
aqueles desbotados dias
que escorriam por entre nossos dentes...

Mais que tua ausência,
sinto falta de mim!
Ilustração: dialogos-impertinentes

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Reinício

Acreditar nas virtudes dos homens,
na textura dos ventos,
na pureza dos dias.
E conduzir os passos seguros,
os olhares serenos,
as palavras completas
ao deserto da eternidade...

E recomeçar!


Ilustração: claudiohumberto

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Descaso

Teci cuidadosamente um novelo
de realidades, de nuas verdades,
que embaçam meus olhos, que
não me deixam enxergar...
Escancaradas, estas expostas verdades
desamparam estas festas dos sonhos,
por traz das quais me oculto.

O novelo colorido, com garras de feras
cansadas, se guarda no tempo, se torna
eterno,
seduz os meus dias,
habita em mim...

Ilustração: 2.bp

domingo, 26 de julho de 2009

Senhor do nada


Sou fabricante de sonhos,
inventor de todos os silêncios,
aquele que semeia os ventos,
o que faz correr todas as idades...

Sou o que o veneno não vinga,
o que chora nas manhãs,
poupando todas as tuas lágrimas.

Sou o dono de todas as sombras
e de todas as sementes
e dos canteiros já feitos,
Senhor de tudo e de todos,
herdeiro da solidão...

Ilustração: geocities